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Por Vandi Dogado
Toda civilização é, em última análise, um delicado pacto entre a liberdade e a ordem. Poucas vezes essa tensão se revela de forma tão crua como quando a sociedade se vê forçada a julgar seu "bobo da corte". No Brasil, esse antigo drama encontrou seu palco na figura de Leonardo de Lima Borges Lins, humorista conhecido pela audácia de seu verbo cortante e pela alcunha de Léo Lins. Sua condenação criminal, selada em junho de 2025, não foi somente um revés em sua carreira; foi um sismo que abalou os próprios alicerces do debate público. Uma pena severa lhe foi imposta por conta das palavras tecidas em seu espetáculo "Perturbador", título que se provou profético. Este caso transcende a biografia de um homem e toca na questão que assombra toda sociedade que se pretende livre: qual o limite da expressão quando ela se veste de arte? Como proteger a dignidade dos mais vulneráveis sem erguer as muralhas da censura, sufocando o riso que, por vezes, é o único antídoto contra a tirania do silêncio? Como diferenciar a verdadeira arte de disfarces para perpetuar o sofrimento de grupos vulneráveis?
O martelo da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo soou com gravidade que ecoou muito além do tribunal. Pela mão da juíza Bárbara de Lima Iseppi, a Lei manifestou seu veredito: oito anos e três meses de reclusão em regime fechado, além de multa superior a um milhão de reais e indenização por danos morais coletivos. Abraçada pelo Ministério Público Federal, a acusação sustenta que a arte de Lins tornou-se uma arma apontada contra múltiplos grupos: negros e idosos, crianças vítimas de estupro, pessoas obesas ou portadoras de HIV, homossexuais e indígenas, nordestinos e judeus – uma miríade de grupos que a sociedade prometera proteger em seu caminhar civilizatório. Na lógica cristalina de sua sentença, a magistrada encontrou o dolo, a intenção de ferir, na própria confissão do artista, que por vezes admitia o viés de suas criações. Ela foi taxativa: o humor não poderia ser um salvo-conduto para o crime.
Um elemento decisivo pesou no julgamento: a ofensa não se confinou às paredes de um teatro, mas foi semeada aos quatro ventos da internet, alcançando audiência ilimitada e multiplicando seu potencial de dano. Isso anulou o argumento de que "assiste quem quer". Aos olhos da corte, Lins, ciente do veneno em suas palavras, escolheu prosseguir, demonstrando descaso condenável. O epicentro do terremoto moral que sacudiu a nação foi o espetáculo de nome profético "Perturbador". Nascido nos palcos em 2022, não se contentou com os aplausos de uma plateia cativa; sua íntegra foi imortalizada no YouTube, onde alcançou mais de três milhões de visualizações antes que o martelo da juíza o fizesse silenciar. No repertório de Lins, encontrava-se um estudo sobre a anatomia do tabu. Ele não tangenciava o proibido; mergulhava nele com intenção manifesta de dinamitar as fronteiras do aceitável. Uma zombaria metódica varria o espectro da condição humana.
Contra os nordestinos, pintava-os com cores da primitividade: "Pegar voo para o Nordeste é uma experiência, porque tem umas pessoas com aparência primitiva". Contra os obesos, o escárnio tomava forma de animalização. O racismo vestia-se de ironia sobre adoção de crianças africanas, "Lá você escolhe no pé, 'esse tá bem escurinho, vai dar like no Insta'", e minimizava a dor histórica da escravidão. Não contente, a transgressão descia a abismo ainda mais sombrio, flertando com a pedofilia em frases que arrepiavam a alma: "Sou totalmente contra a pedofilia, sou mais a favor do incesto, se for abusar de uma criança, abusa do seu filho, ele vai fazer o quê? Contar para o pai?". O fato de estarem perpetuadas on-line, acessíveis a qualquer um, transformou o que poderia ser provocação efêmera em monumento duradouro à ofensa. Foi esse alcance e permanência digital que a justiça considerou agravante irremediável. Como se sentiria alguém que passou na infância por abusos sexuais?
Longe de ser o epílogo da saga, a sentença foi seu verdadeiro prólogo. Assim sendo, o veredito inaugurou uma guerra de ideias que cindiu a nação. De repente, o caso de um único homem tornou-se espelho das duas almas do Brasil contemporâneo, postas em irreconciliável confronto. De um lado perfilaram-se os defensores da liberdade artística em sua forma mais pura. Para colegas de ofício, intelectuais liberais e uma legião de admiradores, a condenação era um anátema, prenúncio de censura. Argumentam que o palco do stand-up é território sagrado, regido por "licença estética" onde a persona do comediante, tecida em ironia e hipérbole, não se confunde com o cidadão de carne e osso. O próprio Lins defende-se alegando que seu personagem, ao escarnecer de todos, não discriminava ninguém, desafiando a moral seletiva de uma era "politicamente correta". Para eles, o aplauso das massas era o único veredito que importava.
Do outro lado, erguia-se visão de mundo ancorada no princípio da dignidade humana que, assim como a liberdade de expressão, é pilar constitucional. Ativistas, juristas e parte considerável da consciência pública viam nas piadas de Lins não a transgressão da arte, mas a perpetuação da violência. Para eles, a liberdade de expressão não é cheque em branco para ferir. Quando o riso se faz à custa de grupos já alquebrados pela história, ele deixa de ser humor e torna-se ritual de humilhação, reforçando estigmas que mantêm estruturas de opressão intactas. No stand-up, sem máscara de personagem, o humorista fala por si; a ficção cede lugar ao ato, e a piada racista torna-se ato criminoso.
O Brasil viu-se diante de um dilema tão antigo quanto a filosofia. De um lado, o medo de que a Justiça, ao policiar a arte, torne-se tirana do gosto e do pensamento. Do outro, a convicção de que nenhuma sociedade pode florescer se permite que a dignidade de seus filhos seja moída como matéria-prima para entretenimento. Por certo, o caso Léo Lins deixou de ser sobre um homem para tornar-se a pergunta dirigida a toda a nação: que tipo de liberdade, e a que custo, estamos dispostos a defender? Para ir além da poeira da batalha imediata, a questão convida-nos a perscrutar o próprio fenômeno do humor através das lentes que a sabedoria acumulada nos oferece.
Em sua essência, o riso é um paradoxo: pode ser o solvente que dissolve a tirania ou o ácido que corrói a dignidade. A Sociologia e a Antropologia ensinaram-nos que a piada é um rito social. Como o bobo da corte medieval, o comediante tem licença para inverter a ordem, profanar o sagrado e forçar-nos à reflexão. Mas todo rito exige um pacto, uma cumplicidade cultural que nossa era digital, com sua “viralização” desenfreada, rompeu e despedaçou. A piada, antes dita a uma tribo, agora ecoa pelo mundo, e seu significado perde-se na tradução. É nesse vácuo que floresce o que pensadores contemporâneos batizaram de "preconceito e racismo recreativo": a antiquíssima prática de empregar o entretenimento para reafirmar quem pertence ao centro e quem está à margem.
Já a Psicologia nos leva a uma viagem às profundezas da alma. Revela-se que, sob o manto de um chiste, frequentemente esconde-se impulso agressivo, hostilidade que a civilização nos força a reprimir. Pesquisas recentes confirmam essa intuição, mostrando como o humor que deprecia pode anestesiar nossa sensibilidade moral. No entanto, há outra vertente: o riso que cura, a autoironia que une um grupo e transforma dor em resiliência. A questão fundamental é a direção da piada: ela fortalece os laços de uma comunidade ou fere outra? Cabe ao artista a escolha: a piada como remédio ou como veneno à alma. O próprio Lins admitiu, em seu show, que a piada tem essa força, mas disse discordar dos que, em nome dos que sentem dor, devem silenciar o humor.
No que tange à Filosofia, cabe-lhe a pergunta final: há limites éticos para o humor? A história do pensamento oscila. De um lado, Voltaire brandindo a sátira como a mais afiada arma contra o dogma. Do outro, Platão, temeroso de que a comédia sem freios corrompesse a moral da República. Da ética moderna emerge distinção fundamental: a diferença entre mirar para cima (punching up), alvejando o poder, e mirar para baixo (punching down), escarnecendo dos já vulneráveis. Quem busca argumentação para liberdade artística total usa argumento filosófico unilateral. Contudo, é necessário olhar multidisciplinar para alcançar equilíbrio.
Quando a filosofia cede a palavra à lei, o debate sobre humor encontra seu terreno mais sólido e disputado. A questão deixa de ser "o que é a arte?" para se tornar "o que a lei permite?". A Constituição brasileira de 1988, nascida do anseio por liberdade após longo inverno de autoritarismo, consagra a livre manifestação do pensamento e da expressão artística. Veda expressamente a censura prévia, e o Supremo Tribunal Federal tem estendido esse manto protetor sobre a atividade humorística, reconhecendo-a como vital para a saúde da democracia. Contudo, a mesma Carta que celebra a liberdade lhe impõe limites. Ela não é hino à anarquia, todavia arquitetura de uma convivência. No ápice dessa arquitetura está a dignidade da pessoa humana. Assim, a Constituição ergue dique intransponível contra o racismo e outros preconceitos, tratando-o não como opinião, e sim como crime.
Em decisões históricas, o Supremo Tribunal sentenciou que o discurso do ódio não habita o santuário da liberdade de expressão; é, antes, seu inimigo. Foi sobre este alicerce em que se ergueu a condenação de Léo Lins. A juíza seguia rota já traçada pela mais alta corte do país, concluindo que a sátira, ao promover humilhação sistemática, abdicara de sua proteção artística para se tornar ato ilícito. É fundamental notar que a responsabilização posterior não se confunde com censura. A lei não impede a piada de ser dita; reserva-se o direito de julgá-la depois, sopesando os bens em conflito. Essa sentença sinaliza que, na balança da justiça brasileira, a liberdade do artista não possui peso absoluto para esmagar a dignidade do cidadão.
Toda civilização revela seu verdadeiro caráter naquilo que a faz rir. No Brasil, o caso expôs fissura profunda no edifício social, onde o debate sobre liberdade da arte parece esforço coletivo para não enxergar a realidade que o sustenta. Ao folhear os relatórios de violência do Brasil, esse dossiê da dor cotidiana, com centenas de jovens negros abatidos, vidas LGBTQIA+ ceifadas, abusos sexuais infantis, não se pode deixar de ver a conexão sombria. Por conseguinte, a dor não é somente ignorada pelo riso; ela é convertida em sua matéria-prima. O corpo que sofre ou cai na realidade é o mesmo que vira objeto de escárnio no palco, e o riso que ecoa é o som de um pacto silencioso: o pacto dos que estão a salvo, rindo da precariedade dos outros. E, a plateia, ao gargalhar, deixa de ser espectadora e torna-se cúmplice na normalização do trauma.
Precisamos ficar atentos à alegação de que "se faz piada com todos", isso se revela frágil e falacioso, sob escrutínio da história. Deve-se compreender, além de tudo, que a piada nunca atinge a todos da mesma forma. O dardo lançado contra o trono pode ser ato de coragem; o mesmo dardo contra o marginalizado é somente mais um golpe em feridas abertas. É aqui que o nobre ideal da liberdade de expressão, forjado para proteger minorias da tirania da maioria, sofre sua mais cruel inversão: é invocado pela maioria para garantir seu direito de rir das mesmas minorias. A defesa de que Léo Lins estava somente "interpretando um personagem" carece de consistência frente ao entendimento legal e à construção social de sua imagem. A juíza Bárbara Iseppi rejeitou categoricamente a tese do “animus jocandi” (intenção de humor): "não se trata de personagem, mas sim da pessoa, o comediante Leo Lins quem ali está a proferir os discursos".
Logo após a condenação, o comediante Danilo Gentili saiu em defesa do colega e declarou que “é melhor o remake de ‘Vale Tudo’ não ter a morte da Odete Roitman, porque vai que queiram prender o ator ou atriz que a matou por homicídio”, parte de uma falsa equivalência entre a responsabilização por falas no stand-up e a responsabilização por atos cometidos por personagens fictícios em obras dramatúrgicas. Para demonstrar o equívoco lógico dessa analogia, é necessário analisar, com precisão, as diferentes relações entre identidade civil, nome artístico e personagem em casos célebres da cultura brasileira.
Então, tomemos a versão original da novela citada por ele.O caso paradigmático de Beatriz de Toledo Segall, que imortalizou a vilã Odete Roitman na versão original da telenovela “Vale Tudo”, para percebermos a distinção cristalina entre intérprete e personagem. Todas as manifestações públicas, entrevistas e opiniões da atriz sempre se deram sob sua identidade civil, Beatriz Segall, sem jamais se misturar atitudes entre a pessoa real e a figura ficcional. Assim, toda responsabilidade por declarações ou posicionamentos era rigorosamente atribuída à atriz — jamais à persona que encenava. Nem mesmo a icônica vilania da personagem, responsável por um dos crimes mais célebres da dramaturgia nacional, poderia ser jurídica ou moralmente imputada à intérprete. Tampouco, Cássia Kis responderia legalmente porque sua personagem Leila matou Odete Roitman.
Semelhantemente, Arlette Pinheiro Monteiro Torres adota o nome artístico Fernanda Montenegro, sob o qual é publicamente reconhecida e assume suas opiniões em entrevistas, eventos e debates. No entanto, quando Fernanda interpreta figuras como Bia Falcão em “Belíssima”, permanece intacta a separação entre artista (nome civil ou artístico) e personagem. Nenhuma fala ou gesto de Bia Falcão pode ser juridicamente, ou moralmente atribuído a Arlette, ou Fernanda, pois a personagem só existe no universo da narrativa. Assim, seja com nome civil ou artístico, ela responde por seus próprios discursos, jamais pelos textos atribuídos a suas personagens.
O exemplo do comediante Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias dos Trapalhões, também reforça esse raciocínio. Zacarias era um personagem cômico, existente somente no palco ou diante das câmeras. Fora desse contexto, Mauro era o sujeito real, responsável por suas opiniões e atos em entrevistas ou declarações públicas. Não havia, portanto, sobreposição entre indivíduo e personagem: o que pertencia ao universo da ficção jamais se misturava à vida civil.
Já o caso de Leonardo de Lima Borges Lins evidencia uma diferença fundamental. “Léo Lins” é um nome artístico, mas aparentemente não corresponde a um personagem criado para o palco, tampouco a uma persona dotada de fronteiras claras entre realidade e ficção. Ao contrário: todas as manifestações públicas do comediante, em shows, entrevistas, redes sociais ou debate, são feitas como Léo Lins. Não existe um momento em que o indivíduo Leonardo se distingue do artista; não há uma máscara dramatúrgica a ser invocada como escudo. Se, de fato, se tratasse de um personagem, seria preciso que as entrevistas, opiniões e atos públicos ocorressem sob o nome civil ou, no mínimo, fosse possível separar claramente o que é encenação e o que é discurso pessoal.
Certo escritor publicou que no "stand-up", não há uma ficção ou personagem teatral, como ocorre no teatro clássico. O comediante fala por si, como pessoa real, com os próprios valores, intenções e limites, e não como intérprete de um papel. Dessa forma, as piadas não podem ser dissociadas do sujeito que as profere, isso reforça que não se trata somente de “dar vida a um personagem”, mas sim de expressar ideias e visões de mundo. Quem é o autor? Leo Lins! Isso mesmo, ninguém leu errado. No livro “Segredos da Comédia Stand-up”, publicado em 2014, ele admite o comediante é o responsável por suas falas. Assim sendo, sua defesa jurídica de que interpretava um personagem entra em contradição com as próprias palavras na página de seu livro. Não sabemos se a Justiça teve acesso a essas informações, porque se tiver pode, inclusive, ser empregado para exemplificar que houve dolo em suas abjetas "piadas", sempre contatadas não com as tradicionais pausas de stand-up, mas com tom aparentemente impaciente e debochado.
Assim, é insustentável a tentativa de equiparar a responsabilidade de um humorista em stand-up à de um intérprete de personagens fictícios. Tanto Beatriz Segall quanto Fernanda Montenegro e Mauro Faccio Gonçalves respondem, publicamente, apenas por aquilo que dizem como pessoas reais, sob seus nomes civis ou artísticos — nunca por crimes ou atos de suas personagens. Se Léo Lins se diz personagem, deveria, pela lógica do espetáculo, restringir sua atuação ao palco, jamais dar entrevistas ou se manifestar como Léo Lins no espaço público. Sua defesa de estar somente interpretando entra em contradição com sua própria prática e com o entendimento corrente do que é ser artista ou personagem no contexto brasileiro. Portanto, a analogia proposta por Danilo Gentili não resiste a uma análise lógica, artística e jurídica: os casos não são comparáveis. Responsabilizar um humorista por aquilo que diz em nome próprio não é, nem de longe, o mesmo que punir atores por crimes de ficção. Trata-se de uma distinção fundamental, que precisa ser respeitada para que o debate sobre liberdade de expressão e responsabilidade não seja contaminado por paralelos artificiais ou falácias retóricas.
Esses exemplos evidenciam que, enquanto o personagem se restringe ao universo da representação, o nome artístico pode, por vezes, adquirir a solidez de uma identidade civil, principalmente ao se tornar o principal vetor de comunicação pública do indivíduo. Por conseguinte, o argumento de que o “personagem” exonera de responsabilidades legais ou éticas revela-se frágil, quando o próprio sujeito opta por uma sobreposição deliberada entre sua atuação e sua identidade social. Logo, argumentação, como a do humorista Danilo Gentil, de que o caso de Lins seria o mesmo que o de personagens assassinas de novelas, é um argumento inválido.
Necessita-se compreender que o entendimento não se limita ao âmbito do senso comum, todavia é amparado pela própria lógica social e pelo ordenamento jurídico: personagens de ficção não possuem personalidade jurídica, tampouco podem ser sujeitos de direitos ou deveres. Logo, jamais se poderia responsabilizar atores por crimes de seus personagens. Essa separação, que parece evidente no contexto da teledramaturgia tradicional, mostra-se menos nítida em casos contemporâneos, como o de Léo Lins. O humorista, ao defender-se alegando interpretar um personagem ao utilizar seu nome artístico no palco, acabou por borrar as fronteiras entre persona cênica e indivíduo real, sobretudo quando inexiste uma delimitação clara entre a voz ficcional e a sua opinião. Nos tribunais, prevaleceu o entendimento de que o discurso discriminatório, ainda que apresentado sob o véu do humor, foi proferido por Léo Lins enquanto figura pública, e não por um personagem estritamente separado de sua identidade social. A responsabilização, nesse caso, recaiu sobre o indivíduo concreto que detém controle sobre o discurso, evidenciando que a imunidade outrora conferida pela ficção não se aplica indistintamente a todas as formas de atuação.
E, para arrematar a ideia de personagem como defesa, a nova redação da Lei do Racismo (Lei 14.532/2023) criminaliza qualquer fala que promova constrangimento ou discriminação, mesmo no contexto artístico ou recreativo. A lei considera indiferente à máscara e responsabiliza o agente que diz a piada, não somente o autor moral do texto. A construção da persona é legítima do ponto de vista expressivo, contanto que não se constitua em escudo para disseminar discurso de ódio. Se o artista difunde ideias discriminatórias, cabe cobrar-lhe responsabilidade pelo conteúdo que repercute no mundo real.
Essa temática de liberdade de expressão tornou-se nebulosa, justamente porque muitos brasileiros tomam como exemplo civilizatório a sociedade americana. Lá, de fato, a constituição concede liberdade de expressão irrestrita. Muitos são tentados por tal ideia. Nossa constituição é diferente. De tanta paixão pelos princípios de outra distinta cultura, até mesmo o STF se confundiu em determinadas decisões. Em 2017, a presidente do STF, Cármen Lúcia, decidiu manter suspensa a regra do Enem que previa nota zero para redações que desrespeitassem direitos humanos, argumentando que o combate à intolerância social não pode ser feito com maior intolerância estatal. Contudo, após o STF ter sido vítima de ataques de fanáticos e políticos, decidiu que a liberdade de expressão não pode ser usada para transgredir direitos humanos ou cometer crimes. Parece ter havido mudança de postura, embora sempre houvesse clareza sobre os limites da liberdade de expressão na Constituição Federal.
Como vimos, a Constituição Federal assegura a liberdade de expressão, entretanto essa liberdade não é absoluta e deve ser ponderada com outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a honra e a imagem. O artigo 5º, inciso IV, garante a livre manifestação do pensamento, e o artigo 220 reforça que essa manifestação deve observar os limites constitucionais. Por outro lado, o artigo 5º, inciso X, protege a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. Isso implica que a liberdade de expressão deve ser exercida respeitando esses direitos, limitando discursos que firam a dignidade humana, promovam discriminação ou incitem violência.
Além das leis mencionadas, no caso de Leo Lins, a juíza baseou sua decisão principalmente nos seguintes dispositivos: Artigo 20, §2º, da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Racismo), que criminaliza a prática e incitação à discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e Artigo 88 da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que pune a discriminação contra pessoas com deficiência. Dessa forma, do ponto de vista legal, não há dúvidas sobre a substância jurídica da sentença. O que se pode discutir é se a pena foi exagerada, não se constitui censura sem fundamento. Alguém poderia discordar das leis, jamais da decisão da magistrada. A questão imposta ao Brasil não é silenciar o riso, entretanto amadurecê-lo. A história do progresso humano é também a história da expansão da empatia. Responsabilizar não é censurar; é convidar à reflexão, um chamado para que a arte, em vez de repetir os roteiros da opressão, invente novas formas de graça. Mesmo para quem considera as "piadas" de Lins humor, não há como negar de que sejam de baixa qualidade. Não existe ali a flor da criatividade em sua essência, a graça espontânea. Muito pelo contrário, causa desconforto de ouvi-lo dizer que quem deveria cometer pedofilia é o pai, porque a criança não teria para quem reclamar. Não é inteligente e não tem a menor graça. A verdadeira conscientização talvez não comece no palco, mas na plateia: no dia em que o público se recusar ao prazer fácil da humilhação e exigir do artista a graça que aproxima, não a esperteza que afasta.
Danilo Gentili, ainda, manifestou-se publicamente acerca do caso envolvendo Léo Lins, questionando a natureza do suposto crime imputado ao humorista. Em sua argumentação, Gentili sustentou que Lins limitou-se a contar piadas em um espetáculo de comédia, classificando como desproporcional, e até censória, a punição aplicada pelo Judiciário. Declarou, ainda, que “piadas não geram mortes, não produzem intolerância nem preconceito. São apenas piadas”, criticando as autoridades que, em sua visão, tratariam a comédia como se fosse realidade, o que caracterizaria, segundo ele, uma espécie de regressão social. Gentili frisou conhecer Léo Lins pessoalmente, descrevendo-o como “um dos caras mais gentis e corretos que existe”, e evocou sua própria experiência de ter enfrentado situação similar, expressando a expectativa de que o bom senso prevaleça nas instâncias superiores.
No entanto, um exame mais detido de seus argumentos revela falácias evidentes. A começar pela tentativa de isentar Léo Lins de responsabilidade com base em sua personalidade ou reputação privada. O argumento de que a gentileza pessoal eximiria alguém da possibilidade de cometer atos reprováveis não resiste ao crivo da lógica, tampouco ao da experiência histórica. Casos emblemáticos demonstram que o perfil público de uma pessoa, mesmo marcado por aparente cordialidade, não serve como prova de inocência nem impede a prática de condutas ilícitas ou moralmente reprováveis. Tome-se, a título ilustrativo, a história de Timothy Murphy-Johnson, que alcançou notoriedade nos Estados Unidos após sua esposa, Jennifer Murphy, divulgar uma lista afetuosa intitulada “Por que amo meu marido”, destacando virtudes como gentileza, paciência e dedicação à família. O relato rapidamente se espalhou nas redes sociais, suscitando depoimentos entusiasmados de amigos e parentes, que endossavam a imagem de um casal ideal. A perplexidade, contudo, foi generalizada quando Murphy-Johnson foi condenado pelo assassinato de sua esposa, revelando que manifestações públicas de apreço ou cordialidade não são, em si mesmas, indicativos de inocência ou de caráter.
Outro aspecto criticável do discurso de Gentili reside na afirmação de que piadas são inofensivas, desprovidas de potencial para gerar intolerância, preconceito ou violência. Essa visão, frequentemente repetida como um dogma em debates sobre humor, desconsidera o impacto histórico e social de práticas cômicas que, sob o disfarce do entretenimento, perpetuaram estigmas e sustentaram estruturas de opressão. No século XIX, por exemplo, Thomas Dartmouth Rice, um ator branco norte-americano, subiu ao palco caracterizado com o rosto pintado de preto, prática posteriormente denominada blackface, incorporando o personagem “Jim Crow”. Sua atuação, centrada em caricaturas degradantes da população negra, conquistou enorme popularidade, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. O espetáculo “Jump Jim Crow”, cuja tônica era a ridicularização do negro como indolente e intelectualmente inferior, inaugurou uma tradição de minstrel shows em que companhias inteiras, compostas por artistas brancos (e, mais tarde, até por artistas negros coagidos), apresentavam-se pintados com carvão ou graxa, consolidando no imaginário coletivo arquétipos racistas profundamente arraigados.
Os efeitos dessas representações ultrapassaram o âmbito teatral, influenciando decisivamente como os brancos norte-americanos percebiam a população negra. Tipos sociais construídos nessas encenações — o “vadio por natureza”, o “criado submisso”, o “trapaceiro”, tornaram-se bases para legitimar uma série de políticas segregacionistas, cristalizadas nas leis Jim Crow a partir da década de 1870. Não por acaso, o nome da legislação deriva justamente do personagem satírico de Rice. Essas normas determinaram, por décadas, a separação racial em escolas, transportes, espaços públicos e privados, institucionalizando a inferiorização legal e simbólica da população negra, apesar da abolição formal da escravidão.
Tal aparato normativo não se limitou a criar barreiras jurídicas; instaurou um regime de controle social sustentado por violência, medo e impunidade. Linchamentos, humilhações públicas e a colaboração (ativa ou omissa) de autoridades consolidaram a supremacia branca e a marginalização dos afro-americanos. Dados históricos indicam que, entre 1877 e 1950, mais de quatro mil negros foram linchados nos Estados Unidos, frequentemente por motivos banais, num contexto em que o humor racista servia de combustível para a manutenção de estereótipos e para a naturalização da violência.
Por isso, afirmar que piadas jamais contribuem para a propagação do preconceito ou da intolerância não só ignora os exemplos históricos, mas também perpetua uma compreensão superficial dos mecanismos sociais de exclusão. O humor, como linguagem socialmente situada, pode funcionar tanto como ferramenta de crítica quanto de opressão, dependendo do contexto, do conteúdo e da intencionalidade das mensagens veiculadas. Negar esse potencial é, em última análise, fechar os olhos para as responsabilidades éticas que acompanham o exercício público da palavra, inclusive, e especialmente — no campo da comédia.
Tudo isso encontra um ponto de origem simbólico, na prática do blackface. Não se pretende afirmar que uma única peça teatral, isoladamente, tenha sido responsável pela instauração de um regime de opressão. Entretanto, o espetáculo funcionou como instrumento de naturalização da suposta inferioridade negra, além de legitimar políticas públicas excludentes. O historiador David Roediger observa com precisão que a cultura popular não se limitou a espelhar a hierarquia racial vigente, mas foi agente ativo na constituição, sustentação e disseminação dessa ordem, com eficácia devastadora.
Mesmo após os avanços obtidos com o movimento dos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960, a herança simbólica do blackface e das leis Jim Crow ainda reverbera na cultura contemporânea. Diversos artistas e comediantes que recorreram a essa prática, em tempos mais recentes, foram alvos de severas críticas e protestos, sobretudo por parte da comunidade negra e de segmentos comprometidos com a justiça racial. Apesar disso, ainda há quem minimize ou relativize seu impacto, tratando-o como mero “humor do passado”.
Entretanto, a é que o blackface jamais foi uma manifestação artística inocente. Constituiu — e ainda constitui, quando reproduzido, uma das formas mais visíveis e insidiosas de violência simbólica contra a população negra. Converteu sofrimento em motivo de riso, transformou desigualdade em piada e humilhação em espetáculo. Essa operação, longe de ser inofensiva, pavimentou o caminho para que políticas letais fossem implementadas sob o disfarce da legalidade. Compreender o significado de um homem branco pintado de negro arrancando gargalhadas em pleno século XIX é, na verdade, entender a raiz de um sistema de exclusão racial cujas consequências foram, e continuam sendo devastadoras. Não se trata só de teatro; trata-se de poder, memória e sangue.
Sem dúvidas, a defesa mais utilizadas pelos humoristas foi a do raciocínio segundo o qual não se deve responsabilizar um humorista porque “há políticos corruptos impunes” configura uma clássica falácia de falsa equivalência, frequentemente mobilizada para desviar o foco do debate e diluir a gravidade de condutas lesivas à dignidade humana. Trata-se, antes de tudo, de uma estratégia argumentativa que, ao apontar a existência de um mal, a corrupção sistêmica e a impunidade na esfera política, pretende relativizar ou justificar outro, como se a falha em um campo social pudesse atenuar, absolver ou legitimar infrações cometidas em outros domínios.
Ainda que se reconheça a veracidade parcial ou geral da premissa, a persistência de casos em que agentes públicos, apesar de crimes comprovados, gozam de liberdade ou de lentidão processual —, tal constatação não autoriza, sob nenhuma perspectiva ética ou jurídica, a conivência com práticas discriminatórias, como o racismo, a homofobia e outras formas de discurso de ódio. Não se corrige um desvio institucional admitindo, por inércia ou cumplicidade, a proliferação de outras violações. A leniência diante de crimes de ódio ou de injúria, sob o argumento da impunidade alheia, somente reitera o ciclo de injustiça, convertendo a exceção, o não cumprimento da lei, em regra universal, o que compromete os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Há que se destacar, ainda, o equívoco factual presente na máxima de que “políticos nunca são punidos”. É certo que o ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo de outros sistemas, prevê prerrogativas e instâncias recursais que podem retardar ou dificultar a punição de figuras públicas. Não obstante, a história recente do país e de outras democracias está repleta de episódios em que governantes, parlamentares e altos funcionários foram processados condenados.
Além disso, é fundamental compreender que a coexistência de diferentes injustiças não autoriza a anulação recíproca de suas gravidades. Cada esfera do convívio social apresenta seus próprios mecanismos de controle e responsabilização, e a impunidade em um setor não é desculpa válida para a negligência ou tolerância em outro. Se o combate à corrupção é bandeira legítima, que ela se manifeste em ações concretas: fiscalização rigorosa, mobilização social, participação informada nas eleições, cobrança sistemática de autoridades e, sobretudo, defesa intransigente do Estado de Direito. O mesmo deve ser exigido na luta contra o racismo, a homofobia e todas as formas de violência simbólica ou material. Utilizar a falência ou ineficácia pontual de determinadas instituições como pretexto para a permissividade diante de outras injustiças é perpetuar o ciclo vicioso de impunidade e de desumanização. A indignação, quando autêntica, deve se traduzir em compromisso ético, em engajamento político e em responsabilidade cidadã, jamais em álibi para a perpetuação de práticas discriminatórias. Afinal, toda sociedade que ambiciona a justiça precisa recusar qualquer lógica de compensação entre crimes, reafirmando que a luta por direitos e dignidade é indivisível e inadiável.
O episódio Léo Lins, que pode ser lembrado menos por sua polêmica e mais como sintoma doloroso do amadurecimento de uma nação que começa a se perguntar, com seriedade, não somente do que ela ri, mas com quem ela ri. Rir de alguém é afirmar poder; rir com alguém é criar comunidade. E nenhuma civilização sobrevive por muito tempo sem esta última. Pessoas de grupos vulneráveis que se sintam desconfortáveis com as piadas de Lins, amplamente disseminadas na internet, deveriam processar o humorista. Deixar ao Estado essa tarefa é que abre margem para acusações infundadas de censura.
Certamente, o impacto nefasto das chamadas “piadas” promovidas por comediantes como Léo Lins revela-se de forma mais aguda no ambiente escolar, espaço em que as dinâmicas sociais continuam em formação e as fronteiras entre o cômico e o ofensivo nem sempre são compreendidas com clareza. Nos últimos anos, assistimos a uma preocupante banalização do sofrimento de grupos vulneráveis, legitimada, em grande medida, por discursos travestidos de humor. O que antes se restringia aos palcos e a contextos específicos, hoje transborda para o cotidiano das crianças e adolescentes, que, influenciados por tais referências, veem-se tentados a reproduzir nas salas de aula práticas de escárnio, discriminação e violência simbólica.
Tal fenômeno ganha contornos ainda mais preocupantes quando consideramos a difusão massiva desses conteúdos nas redes sociais, meios que potencializam e perpetuam narrativas excludentes. O riso obtido às custas do outro, muitas vezes, passa a ser visto como um gesto de audácia ou irreverência, quando, na verdade, contribui para o enrijecimento de estereótipos e a perpetuação de desigualdades históricas. Vale lembrar que o bullying, embora sempre tenha existido, adquiriu proporções alarmantes ao ponto de forçar o legislador brasileiro a tipificá-lo como crime, na tentativa de conter práticas que, em diversos casos, resultaram em graves consequências, incluindo suicídios e episódios de violência extrema.
Exemplos recentes, noticiados amplamente pela imprensa nacional, ilustram o quanto a retórica do humor ofensivo ultrapassa os limites da mera provocação, transformando-se em modelo de conduta para jovens que, em busca de aceitação ou de notoriedade, acabam por reproduzir padrões cruéis. A escola, que deveria ser espaço de acolhimento, diversidade e respeito, converte-se, assim, em terreno fértil para a intolerância, muitas vezes impulsionada por ídolos que se eximem da responsabilidade social sob o pretexto da liberdade artística.
Neste cenário, torna-se indispensável problematizar o papel dos formadores de opinião, especialmente daqueles cuja visibilidade lhes confere poder de influência sobre as novas gerações. Quando o humor escorrega para o terreno do preconceito, o desserviço prestado à sociedade não se limita ao espetáculo: ele adentra lares, instituições e corações, minando a possibilidade de um convívio verdadeiramente democrático e plural. Não à toa, o endurecimento das leis reflete a urgência de um debate que transcenda o palco e alcance a esfera da cidadania e dos direitos humanos. Com tudo isso, espera-se que Leo Lins possa refletir sobre os impactos negativos e retomar sua carreira em outra direção. Todos têm o direito do recomeço e não devem ser hostilizadas por equívocos. Ele tem um poder de influência incrível, deveria usar sua arte para a cura não para a dor. Para finalizar, uma pergunta não silenciosa: será que quem ri de piadas de humor preconceituoso, como as de Lins, não teria inconscientemente uma tendência de ver os grupos vulneráveis como inferiores? A cada um, cabe reflexão sobre si.
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