Feminismo é o contrário de machismo?


POR VANDI DOGADO

Introdução

É frequente, em debates cotidianos superficiais, equiparar machismo e feminismo como conceitos diretamente antagônicos. À primeira vista, o paralelismo linguístico entre "macho" e "fêmea" pode sugerir uma oposição natural; contudo, uma reflexão mais profunda, embasada em argumentos históricos, etimológicos e estatísticos, revela uma realidade bem distinta. Neste ensaio, pretende-se demonstrar por que a suposta equivalência entre os dois termos é inadequada, enfatizando que o feminismo não busca inverter relações hierárquicas, mas sim abolir a lógica de dominação que sustenta o machismo. O feminismo, embora frequentemente resumido à luta por igualdade entre os sexos, abrange uma agenda muito mais ampla e profunda: ele também combate injustiças históricas, preconceitos estruturais e diversas formas de violência que atingem as mulheres em múltiplas esferas – doméstica, institucional, simbólica. Já o machismo, por sua vez, não se limita à crença na superioridade masculina; trata-se também de uma lógica que naturaliza a dominação, promovendo um sentimento de posse sobre a mulher, frequentemente manifestado em práticas de controle, silenciamento e violência. Assim, ambos os termos carregam camadas complexas de sentido que vão muito além de definições simplistas, reducionistas e anticientíficas.

Etimologia e distinção conceitual

O termo "machismo" deriva do castelhano "macho", significando "varão", acrescido do sufixo "-ismo", indicando uma doutrina ou crença. Desde o século XX, passou a caracterizar-se pela crença na superioridade masculina, legitimando privilégios dos homens e naturalizando a submissão feminina.

Por outro lado, "feminismo" surge do francês "féminisme", criado no século XIX para definir um movimento político, social e filosófico cujo objetivo é a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Não há, portanto, qualquer princípio de supremacia feminina embutido em sua origem semântica; o feminismo combate o sexismo e não o gênero masculino em si.

Essas origens conceituais esclarecem uma distinção fundamental: enquanto o machismo promove hierarquias de gênero, o feminismo as combate, estabelecendo não uma oposição entre homens e mulheres, mas sim entre desigualdade e equidade.

Raízes históricas: patriarcado contra emancipação

O machismo representa uma continuidade histórica do patriarcado, sistema que, durante séculos, relegou as mulheres à condição de cidadãs de segunda classe, negando-lhes direitos civis fundamentais. No Brasil, por exemplo, até a década de 1960, mulheres casadas precisavam de autorização dos maridos para exercer atividade profissional fora de casa. Essa limitação legal expressa um padrão mais amplo de dominação, sustentado tanto por normas jurídicas quanto por convenções culturais arraigadas.

Já o feminismo surge, portanto, não como uma ideologia contrária ao masculino, mas como um movimento de reação crítica a esse histórico de exclusão. Suas conquistas emblemáticas — como o direito ao voto em 1932, a promulgação da Lei Maria da Penha em 2006 e a inclusão do feminicídio no Código Penal em 2015 — ilustram avanços civilizatórios que buscam corrigir desigualdades estruturais profundamente enraizadas.

Em âmbito internacional, experiências de países nórdicos como Islândia, Noruega e Suécia demonstram que a adoção de políticas baseadas em princípios feministas resulta em sociedades mais equitativas. Nesses países, observa-se não apenas a redução expressiva da violência de gênero, mas também a ampliação da participação das mulheres em cargos de decisão e o aumento dos índices de bem-estar coletivo. Importante frisar que tais avanços não implicaram a criação de uma "supremacia feminina", como alegam detratores mal-informados, mas sim a construção de sociedades mais justas e equilibradas. O feminismo, nesse contexto, mostra-se não como espelho do machismo, porém como seu mais lúcido antídoto.

Outras formas de desigualdade

Além dos indicadores formais já citados, é imprescindível reconhecer que as mulheres também enfrentam formas menos visíveis, porém igualmente estruturais, de injustiça social. Uma delas é a sobrecarga da jornada dupla, em que as mulheres, mesmo empregadas formalmente, permanecem como principais responsáveis pelas tarefas domésticas e pelos cuidados com filhos, idosos e doentes. Essa divisão desigual do trabalho doméstico não remunerado, naturalizada por convenções patriarcais, compromete seu bem-estar físico e psicológico, restringe o tempo dedicado ao lazer, ao estudo e ao crescimento profissional, além de consolidar barreiras à sua autonomia plena.

Mais do que uma condição pessoal, trata-se de um fenômeno coletivo que perpetua a desigualdade de gênero no cotidiano, reduz a produtividade econômica das mulheres e reproduz a ideia de que o cuidado é uma função feminina por natureza, quando, na verdade, é um dever social que deveria ser partilhado por todos os gêneros de forma equitativa.

Outro ponto crítico, frequentemente negligenciado nos debates públicos, é a condição de maternidade solo, realidade enfrentada por milhões de brasileiras. Dados do IBGE revelam que cerca de 5,5 milhões de lares no país são chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores. Essa configuração familiar, longe de ser exceção, evidencia uma sobrecarga desproporcional: essas mulheres acumulam as funções de provedoras, cuidadoras e gestoras do lar, muitas vezes sem qualquer apoio institucional ou comunitário. A ausência paterna, por vezes marcada pelo abandono financeiro e afetivo, agrava ainda mais a precariedade. Além disso, essas mães enfrentam discriminação no mercado de trabalho, tanto na contratação quanto na ascensão profissional, por serem vistas como menos disponíveis ou mais propensas à "instabilidade". Essa realidade não decorre de escolhas individuais isoladas, mas de um sistema que ainda penaliza a mulher por exercer a maternidade fora dos moldes tradicionais e que falha em oferecer uma rede de proteção eficaz e igualitária.

Ademais, observa-se que as mulheres são alvos recorrentes de formas sutis e persistentes de opressão que perpetuam desigualdades sociais. A violência obstétrica, por exemplo, revela-se em práticas médicas desrespeitosas ou abusivas durante o parto, nas quais a autonomia da mulher é frequentemente desconsiderada. O sexismo linguístico naturaliza a inferiorização das mulheres ao longo da língua, reforçando estereótipos por meio de expressões e estruturas gramaticais que privilegiam o masculino como norma. A hiperobjetificação midiática expõe constantemente os corpos femininos como produtos de consumo, reduzindo sua presença social a atributos físicos e erotizados. Por fim, as pressões estéticas desproporcionais exigem das mulheres padrões irreais de beleza que impactam sua saúde física, emocional e financeira. Tais formas simbólicas de dominação não são menos relevantes: elas sustentam e legitimam práticas discriminatórias mais explícitas, contribuindo para a manutenção de um sistema de desigualdade profundamente enraizado.

Evidências empíricas

A desigualdade salarial entre homens e mulheres continua sendo uma das expressões mais evidentes das disparidades de gênero no Brasil. Conforme aponta a PNAD Contínua (IBGE, 2023), as mulheres recebem, em média, apenas 78% do rendimento dos homens que ocupam cargos de igual responsabilidade e qualificação. Esse desequilíbrio se torna ainda mais acentuado nas posições de liderança, onde a diferença pode alcançar até 41%. Tais números não apenas refletem desigualdade de tratamento, como também evidenciam a persistência de um mercado de trabalho estruturado segundo parâmetros patriarcais. A promulgação da Lei 14.611/2023, que estabelece a obrigatoriedade da transparência salarial entre gêneros, confirma que o problema é objetivo, estrutural e institucionalizado — e, portanto, exige intervenções normativas, culturais e pedagógicas para ser superado.

Além disso, a violência contra as mulheres permanece em níveis alarmantes, evidenciando a persistência de um sistema que ainda falha em garantir sua integridade física e emocional. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que, apenas em 2024, foram registrados 1.437 casos de feminicídio no país — o equivalente a quatro assassinatos por dia motivados por gênero —, além de mais de 245 mil casos de lesão corporal decorrente de violência doméstica. Esses números indicam que o espaço doméstico, onde deveria haver segurança e acolhimento, muitas vezes se torna o local de maior vulnerabilidade para a mulher. Em escala global, a Organização Mundial da Saúde aponta que uma em cada três mulheres sofrerá, ao longo da vida, violência física ou sexual, frequentemente perpetrada por parceiros íntimos. Tais dados expõem uma realidade estrutural, não episódica, que exige políticas públicas integradas e transformações culturais profundas.

A sub-representação política das mulheres é um reflexo direto das assimetrias estruturais de gênero ainda vigentes na sociedade brasileira. Embora componham 52% do eleitorado nacional, elas ocupam apenas 18% das cadeiras da Câmara dos Deputados e comandam menos de 15% das prefeituras. Tais números desmentem qualquer narrativa de inversão de poder e expõem um sistema político marcado por barreiras históricas à participação feminina. A explicação, frequentemente difundida, de que as mulheres estariam "desinteressadas" pela política não resiste à análise: o que se observa, na verdade, é a influência de fatores socioculturais que inibem sua inserção nesse espaço, como a sobrecarga doméstica, a ausência de redes de apoio, a violência simbólica e institucional, além da naturalização da liderança masculina. Essas barreiras não apenas restringem candidaturas femininas, mas também limitam sua permanência e ascensão nas esferas decisórias, contribuindo para a perpetuação da desigualdade de gênero no poder público. 

Apesar dessas evidências, ainda persistem argumentos contrários ao feminismo. Um dos equívocos mais recorrentes é a associação entre feminismo e misandria. No entanto, essa equivalência é incorreta e reducionista. Enquanto o feminismo é um movimento político, social e filosófico que visa eliminar as desigualdades de gênero, a misandria é definida como aversão ou ódio aos homens — uma postura individual, isolada e carente de organização ou respaldo institucional. Diferentemente do patriarcado, que é uma estrutura histórica e sistêmica de dominação masculina, a misandria não constitui um sistema social de opressão. Portanto, associar o feminismo à misandria é uma estratégia retórica falaciosa que visa deslegitimar uma luta fundamentada na justiça e na equidade.

Outro argumento amplamente difundido sustenta que o feminismo teria perdido sua relevância, sob a justificativa de que a igualdade legal entre homens e mulheres já foi conquistada. No entanto, essa alegação ignora um aspecto importante: a existência de leis que asseguram direitos iguais não garante, por si só, que esses direitos sejam plenamente efetivados na prática. Indicadores sociais contemporâneos revelam desigualdades persistentes nas esferas econômica, política e cultural, indicando que a paridade jurídica não se traduz automaticamente em equidade substantiva. Em outras palavras, a igualdade formal é um ponto de partida, entretanto não um ponto de chegada – razão pela qual o feminismo segue atual e necessário.

Também é comum ouvir a afirmação de que o feminismo seria o antônimo natural do machismo, como se fossem ideias simétricas em sentidos opostos. No entanto, essa equiparação ignora a natureza estrutural dos dois conceitos. O machismo configura um sistema historicamente consolidado de dominação masculina, enquanto o feminismo é uma resposta crítica e transformadora a esse sistema. O termo mais apropriado para designar uma possível ideologia de supremacia feminina seria "femismo" — conceito hipotético que não encontra respaldo significativo em movimentos organizados ou estruturas sociais reais. O feminismo autêntico não propõe a inversão da opressão, mas sim sua eliminação, almejando uma sociedade em que hierarquias de gênero sejam superadas em favor da equidade.

Finalmente, há quem opte por se declarar "humanista" em vez de "feminista", como forma de expressar um suposto desejo por justiça universal, sem alinhamento com causas específicas. No entanto, essa distinção é equivocada: o feminismo é, em si, uma forma de humanismo focada no enfrentamento de uma desigualdade histórica concreta – a de gênero. Recusar o termo “feminista”, quando se defende a igualdade entre homens e mulheres, é muitas vezes mais um reflexo da estigmatização do movimento do que uma opção conceitualmente fundamentada. Negar o nome, portanto, não enfraquece a legitimidade nem a urgência da luta que ele representa.

Exemplos internacionais comparativos

A realidade internacional oferece exemplos contundentes do impacto positivo do feminismo na organização das sociedades. Países como Islândia, Noruega e Finlândia, que ocupam as primeiras posições no Gender Gap Index do Fórum Econômico Mundial, demonstram que políticas igualitárias contribuem para a construção de sociedades mais coesas, pacíficas e com altos índices de bem-estar social. Esses resultados incluem desde a redução significativa da violência de gênero até o fortalecimento da participação feminina em esferas de poder e decisão. Em Ruanda, políticas afirmativas implementadas após o genocídio de 1994 promoveram uma das maiores representações parlamentares femininas do mundo, com reflexos positivos na reconstrução institucional e nos indicadores sociais do país. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, embora os avanços sejam notórios, persistem desigualdades salariais e desafios quanto à conciliação entre trabalho e vida familiar, sinalizando que a equidade ainda está em processo de consolidação.

Em contrapartida, países como Afeganistão e Irã ilustram de forma dramática os efeitos de sistemas legalmente machistas. A supressão sistemática de direitos das mulheres, como o acesso à educação, à mobilidade e à livre expressão, revela que o retrocesso institucionalizado não apenas agrava as desigualdades de gênero, mas compromete o próprio desenvolvimento humano. O retorno de regimes fundamentalistas ao poder nessas nações demonstra como o machismo estatal, quando intensificado por ideologias autoritárias, impõe severas restrições às liberdades civis das mulheres e impacta negativamente toda a sociedade.

Essas comparações evidenciam que o grau de adesão aos princípios feministas — entendidos como esforços para garantir direitos iguais, proteção contra violência e paridade nas oportunidades — está diretamente associado ao progresso social e à estabilidade democrática. Onde tais princípios florescem, floresce também a dignidade humana; onde são suprimidos, vicejam o autoritarismo, a violência e a exclusão.

Conclusão

Machismo e feminismo não constituem termos antagônicos de natureza equivalente: o primeiro está enraizado em estruturas históricas que mantêm e legitimam desigualdades, enquanto o segundo é um movimento transformador que visa justamente desconstruí-las. A análise desenvolvida ao longo deste ensaio, fundamentada em etimologia, contexto histórico, dados empíricos e comparações internacionais, revela que colocar ambos os conceitos em posição simétrica distorce a compreensão dos mecanismos de dominação e enfraquece os esforços em prol da equidade de gênero. Assim, rejeitar o machismo implica, por coerência lógica e ética, reconhecer no feminismo não apenas um contraponto, mas um instrumento necessário à promoção de uma sociedade mais justa, onde o gênero não seja fonte de privilégio ou subordinação. A igualdade genuína não se alcança por meio da substituição de uma hegemonia por outra, mas pela remoção dos alicerces que sustentam toda forma de opressão. Qualquer tentativa de tratar feminismo e machismo como opostos meramente simétricos revela, além de uma compreensão superficial, um empobrecimento do debate público. Essa leitura binária ignora as dinâmicas históricas de poder e perpetua a confusão entre quem resiste à opressão e quem a institui.

Atualmente, com o crescimento acelerado de podcasts e influenciadores digitais, muitos discursos reproduzem raciocínios frágeis e mal-informados, frequentemente revestidos de falsa autoridade. O alcance massivo desses conteúdos torna-se especialmente problemático quando opiniões infundadas se disfarçam de análise crítica e acabam alimentando narrativas misóginas e desinformadas. Trata-se de um verdadeiro desserviço à formação da cidadania crítica.

Um exemplo emblemático dessa preocupação foi evidenciado na repercussão da série documental "Adolescentes" (Netflix), que expôs aos pais os riscos reais a que seus filhos estão sujeitos na internet. Embora muitos adultos tenham s
e surpreendido com o conteúdo, a verdade é que tais fenômenos já vinham sendo denunciados há anos por educadores, sociólogos e organizações da sociedade civil. É no ambiente virtual que, muitas vezes sem qualquer supervisão ou mediação, crianças e adolescentes entram em contato com discursos de ódio de gênero, consumo hipersexualizado de corpos femininos e, em casos mais extremos, conteúdos que flertam com apologia à violência sexual.

Não se trata de episódios isolados. A raiz desses comportamentos encontra terreno fértil em uma cultura que ainda educa meninos com base em valores machistas: a ideia de que a masculinidade está ligada ao domínio, à insensibilidade e ao desprezo pela alteridade. A internet, nesse contexto, funciona como um catalisador: amplia, multiplica e reforça tais ideias em algoritmos que premiam a polêmica, o preconceito e a agressividade. E, nas sombras dessas redes, consolidam-se espaços onde o sexo é aprendido por meio de vídeos que banalizam, encenam ou até documentam a violência real contra mulheres. É um ciclo vicioso de naturalização do abuso e da desumanização do feminino que precisa ser urgentemente interrompido por meio de políticas públicas, educação crítica para a mídia e, sobretudo, mudança cultural.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Efeitos Nocivos das Telas no Desenvolvimento do Cérebro

Futuro das IAs no Trabalho